É muito difícil estar em outro País. Do nada, todas as suas coisas, tudo o que você conhece, tudo o que você construiu, incluindo-se aí desde seus bens materiais à reputação que você construiu ao longo dos anos não valem nada.
Em casa eu tenho meu canto, meu quarto, com todas as coisas que comprei com o passar do tempo até o apartamento ter mais cara de lar do que de casa, de parecer mais meu. Tenho os amigos que fiz ao longo dos anos, tenho a reputação que construí fazendo o que eu achava que condizia com a imagem do que eu gostaria de ser, família, cachorro, marcas favoritas, ruas favoritas, restaurantes e bares que me identifico, meu carro, meu diploma.
Aqui eu não tenho nada. Absolutamente nada. Não há nenhum registro de história meu nesse lugar. Posso me reinventar, ser quem eu quiser. Por um lado isso é bom, por outro não. As ruas que passamos fazem parte da nossa história, as marcas de comidas favoritas também. Chegar em um lugar em que você deve criar toda uma nova história é difícil, o faz sentir-se só. Ir ao supermercado me leva o dobro do tempo do que em casa. Não conheço os produtos, não sei qual é o melhor, não sei onde fica, muitas vezes não sei para quê serve.
Pouco a pouco vamos criando a nossa história nos lugares. Aqui já tenho caminhos que prefiro percorrer, lugares que gosto mais de frequentar do que outros, já descobri a cerveja que mais se aproxima da que estou acostumada a beber, e ainda estou tentando descobrir o petisco que mais se aproxime dos meus favoritos: carne seca com farofa de alho e aipim frito ou filé mignon ao molho madeira com farofa e molho à campanha. Bar Devassa, Manoel e Joaquim, BemDito... saudade. Nada disso por aqui.
Carne é uma das coisas que eu classifiquei como muito caras e nenhum dos dias em que fui ao mercado me dei ao luxo de comprá-la. Abri mão das frutas também, não completamente, mas pelo menos sem a mesma intensidade a qual já estava acostumada. Impossível me dar ao luxo de comer uma melancia pela bagatela de 7 dólares ou um copo de água de côco (fake) por U$3,99 quando estava acostumada a comprar de um senhorzinho no Centro todos os dias pela manhã por 1 real, direto da fruta.
Eu nunca fui realmente independente. Sempre precisei dos meus pais. Nunca ganhei dinheiro suficiente a me chamar de dona do meu nariz, mas me lembro que as coisas que eu queria eu sempre tentei fazer do meu jeito, na hora em que desse vontade.
Quando tinha meus 11 anos juntava dinheiro do lanche da escola para poder comprar meu próprio xampu. Eu queria um que era mais caro e estava nas revistas, e por isso administrei meu dinheiro para poder alcançar meu objetivo. Será que eu precisava mesmo de guaraná e um salgado todos os dias na hora do recreio? Troquei por uma barra de cereal ou biscoito que levava de casa (ou até mesmo ficava sem comer nada), e em pouco tempo tinha meu John Frieda para cabelos danificados de praia nas mãos, toda feliz.
Até os 18 anos sempre fiz tudo de bicicleta, era uma dessas bicicleta praianas, lilás, montei ela com algumas peças que me dessem mais conforto, guidão e banco largos, me levava todos os dias para aula e para a praia. Guardava o dinheiro do ônibus para comer meu sanduíche favorito: chester, ovos, batata palha e catupiry, com mate bem gelado.
No primeiro mês em que aniversariei meus 18 anos de vida, corri para a auto-escola. Mal podia esperar para percorrer distâncias mais longas no conforto do carro do meu pai. Na verdade, queria tanto ter a liberdade de não depender do meu pai estar em casa para poder dirigir que passei a usar um carro bem velho dele, que já havia pegado fogo duas vezes, não abria a porta do motorista e aquecia pelo menos uma vez por dia. Nem velocímetro ele tinha, mas eu o amava, me levava para onde eu quisesse (e onde não houvesse rampa muito íngreme, pois o risco de aquecer era alto). Seu rádio do nada aumentava o volume para o máximo, dando sustos em quem quer que estivesse no carro, e quem estivesse no banco carona não podia ficar muito tempo com os pés no chão, pelas altas temperaturas que ele atingia, mas ele me dava liberdade.
Trabalhei em um restaurante de frutos do mar aos 16, durante finais de semana, para poder ter mais dinheiro para sair à noite com meus amigos. Fiz estágio na Defensoria Pública, trabalhei em um dos presídios de um dos complexos mais conhecidos e mais perigosos do Brasil. Trabalhei em outros dois escritórios cíveis, fui monitora de Direito Civil na minha faculdade.
Nada disso conta aqui. Ninguém me conhece. Posso ter sido uma louca, posso ter sido presa, posso inventar que eu fiz o que eu quiser. Ninguém conhece a minha faculdade, os escritórios em que passei, o presídio. Minha carteira funcional, que me autoriza a advogar no meu país é irrelevante aqui, há lugares que não a aceitam nem como identidade civil e eu tenho que apresentar meu passaporte. Não tenho carro, carteira de motorista. Não tenho meu quarto, a televisão que paguei em doze parcelas (na verdade paguei as 6 primeiras, depois não tinha mais como pagar e minha mãe terminou as parcelas para mim), meus lençóis, meus pratos, meu sofá. Nada é meu aqui. Tudo que eu olho não me traz uma memória, uma historia ainda que pequena.
É muito difícil a sensação de um dia pro outro você não representar nada, que você conhece tudo novo e todos passam a te conhecer a partir de uma história que você ainda vai criar. O que as pessoas saberão de você, as recordações que terão contigo nem você sabe quais serão.
É muito difícil você não servir nem para os serviços do setor de apoio do seu país, por não ter a menor identificação civil, não ter o menor registro no lugar onde você mora. Ainda estou aprendendo a lidar com isso.
Ainda com as dificuldades, o fato de ter a oportunidade de passar por uma situação dessas e poder rever meus conceitos sobre o que eu penso em relação à situações que nem passavam pela minha cabeça em casa é uma experiência incrível. Tudo tem seu lado bom. Quem sou eu? Depende do ponto de vista para responder.
Uma pessoa daqui poderia responder uma resposta diferente para quem me conhece em casa. Aqui provavelmente sou vista com uma pessoa mais dependente, mais insegura, sou ouvida diferente, não me expresso exatamente como gostaria de me expressar, como me expresso na minha língua mãe. Quando chega um momento em que devo arguir uma visão política, sociológica ou algo que requeira melhores habilidades com a língua, não digo exatamente o que eu quero, ainda que passe a mensagem com palavras diferentes. Isso faz as pessoas me conhecerem menos.
Em casa sou mais segura, procuro fazer as coisas sozinha, sei como me comportar nas situações. Sei como me vestir para as ocasiões, tenho um perfil provavelmente enquadrado do que representaria uma garota como eu. Aqui não me encaixo nos padrões, pelo menos não exatamente, ainda que me encaixe numa idéia. Díficil explicar. Vou me adaptando.